Diretas Já - Estado, Movimento Social e Sociedade Civil Brasileira.

Por duas décadas os brasileiros tiveram usurpados de seus direitos civis, políticos, sociais e os demais que engobavam a liberdade, a vida e a verdade. Um regime autoritário instalou-se meio a um golpe de Estado no ano de 1964 e trouxe consigo mudanças significativas em âmbito econômico e social no país.  A Ditadura Militar acarretou um vasto rol de danos à sociedade brasileira.  Seu terrorismo de Estado foi protagonista de um imensurável número de brasileiros vítimas de violências físicas e psicológicas. Aos que lutavam por democracia, o destino era quase sempre o mesmo. Perseguidos, exilados, torturados e covardemente assassinados. Sindicatos e entidades estudantis foram fechados. De modo a enfraquecer o senso crítico e autonomia das Universidades, houve o recurso à imposição de diretrizes e reitores, prisões, aposentadorias compulsórias e o controle policial no ambiente, em seus cavalos e prontos a reprimir conversas e reuniões que os fossem “suspeitas”. Esse controle não se limitou às Universidades, impactou também os demais centros produtores de cultura nacional.
Embora tamanha violência e autoritarismo, o regime não saiu vitorioso. Não conseguiram calar aqueles que resistiram, nem pela tortura, nem pelo medo, muito menos pelo exílio.  Da luta contra o arbítrio floresceu o maior movimento social da história do Brasil. Mesmo com marcas deixadas pela violência institucionalizada, emergiram novas forças políticas e socais que conduziram e estabeleceram o processo de redemocratização.  
Neste presente artigo tratarei sobre a questão da sociedade civil no contexto do movimento social que aclamou por eleições diretas no período ditatorial, chamado Diretas Já.  O movimento Diretas Já não pode ser atribuído a linha de tempo que condiz seu início em 1983, já que para seus militantes, o movimento existiu a partir do golpe de Estado, logo que a luta pelos direitos nunca foi levada ao esquecimento, nem sequer por um instante. O processo de transição política brasileira é fruto de vários fatores que o impulsionaram, tendo as Diretas Já um papel importantíssimo no contexto histórico. A campanha reuniu diversos grupos sociais e políticos, que uniram e organizaram manifestações públicas para forçar o Congresso Nacional à aprovação da Emenda Dante de Oliveira.
O paradigma da sociedade civil é carregado de utopia e só pode ser formulado com base nos movimentos sociais geradores da ação coletiva, pois só através dela se faz mudanças. A ação coletiva dos cidadãos é a única força capaz de orientar o presente e destinar o país a um futuro próspero. Os autores a serem tratados serão Cohen e Arato, que partem do pretexto de que os movimentos sociais implicam a ideia de sociedade civil. As articulações do golpe destinaram o país a um grande movimento de massas , a participação em peso da classe média teve um papel de significativa deliberação. A luta por liberdades civis e democráticas durante a Ditadura Militar contribuíram para o aperfeiçoamento da nossa democracia e para que através da mudança da visão de mundo da sociedade, o significado de cidadania ganhasse importância e fosse então, apropriado pelos brasileiros.
Antes de discorrer sobre a presença e a contextualização da sociedade civil brasileira no Movimento Diretas Já, é importante aprofundar  os conceitos sobre sociedade civil e sobre movimentos sociais. Com base em Cohen e Arato e algumas interferências de Charles Tilly e Eder Sader, será exposto os ideais influentes dessas duas teorias. Toda democracia pressupõe um modelo de sociedade, mas isso não quer dizer que se relaciona ao tipo ideal de uma sociedade civil em uma política democrática moderna. A teoria referente a sociedade civil é complexa e não parte de um conceito único, há um conflito de consenso entre teóricos e logo, não possui definição singular.
A teoria que envolve sociedade civil se colocou presente nos dias de hoje em decorrência das lutas contra ditaduras e governos autoritários (militares e comunistas) em diversas partes do mundo, tendo início como oposições na Europa Ocidental. Mesmo havendo a mesma busca em se aprimorar quanto a essa questão, seu significado pode indicar ambiguidade em democracias cujo viés é liberal. Pode-se concluir isso devido a dificuldade dos países em analisar as difusões e injustiças cometidas nesse tipo de sociedade. Porem, têm quem critique essa concepção de sociedade civil e diga que seu conceito advém das primeiras formas modernas da filosofia política, a qual fica a mercê  da usualidade e poderia auxiliar na condução das problemáticas de uma sociedade moderna e complexa como a atual.
Cohen e Arato tratam a questão conceitual da teoria de sociedade civil a partir da premissa que a sociedade civil é um “terreno no Ocidente”,  ao mesmo tempo  ameaçada pelo modelo administrativo e econômico moderno, entretando, não deixa de ter sua importância significativa, já que é o principal espaço para expansão potencial da democracia sob regimes onde se consolidam uma democracia liberal.
A Sociedade Civil não é traduzida por ser tudo que não é Estado em seu âmbito administrativo e econômico, essa é uma concepção frágil e não se sustenta. Há duas roupagens para uma sociedade civil, são elas o liberalismo e o comunitarismo. São antagônicas e se definem a partir da ação individual e coletiva dos cidadãos para com os outros, formando assim um modelo democrático de governo. No liberalismo, a ideia é de que os cidadãos têm seus direitos políticos acima do Estado, tais direitos se fixam independente da cultura ou cenário político e assim, permanecem imutáveis mesmo com as diferenças de sua sociedade. Já o comunitarismo leva em conta a contextualização do cenário político em relação a conjuntura histórica e social que englobam tal sociedade, suas diferenças de classes, cultural e de desigualdade de oportunidades.
Sociedade civil se distingue de uma sociedade de partidos políticos, como também de organizações políticas, poder público (congressos, parlamento, etc) e de uma sociedade econômica que é composta por organizações de produção e comércio, que são o caso das empresas, cooperativas, sociedades e os de mais. Tais sociedades econômicas e políticas se dão a partir da sociedade civil, são suas ramificações. Surgem do pressuposto  das organizações e se institucionalizam principalmente pelos direitos políticos e de propriedade, que são direitos que tecem a nossa sociedade moderna. De modo que os atores políticos e econômicos estão atrelados ao poder do Estado e de sua produção econômica com suas ações controladoras, não há espaço onde a contestação aos modelos se faça, passam a subordinação da integração normativa e do processo de comunicação, dando assim, andamento contínuo das atividades. Porem, a sociedade política com seu papel mediador entre sociedade e Estado é indispensável me modelos de regime atuais, onde há a presença do Estado.
Cabe a sociedade civil não o papel controlador, mas sim a de influenciar diante de ações e associações democráticas levadas a discussão na esfera pública, destinando a sociedade e o Estado em políticas de baixo para cima. O ideal buscado pela sociedade civil é resumido em “Estado Benefactor”. Nele há um agrupamento de metas, que são: Estimular as forças do crescimento econômico (Welfare State); Serviços públicos sobressaem as taxas/impostos cobrados dos trabalhadores; Alta taxa de crescimento; Baixa inflação; Pleno emprego; Aumento da estabilidade e produtividade; Intervenção do governo para sanar e compensar as desigualdades do capitalismo (equidade). Outro destaque a ser dado é na legitimação dos sindicatos, negociações coletivas e movimentos sociais, que influenciam e trazer à tona questões aclamadas pela sociedade civil de maneira linear, são atores que agem de forma mediadora entre as pretensões da sociedade civil em detrimento das políticias econômicas e sociais, seja em relação ao mercado ou diretamente com o Estado.  
Para Arato e Cohen, a sociedade civil se representa da seguinte forma:


La sociedad civil representa nada más una dimensión del mundo sociológico de normas, papeles, prácticas, relaciones, competencias y punto de vista de la construcción de asociaciones conscientes y de la vida asociativa. Una forma de explicar esta limitación en la amplitud del concepto es distinguirlo de un mundo de la vida sociocultural que, como la categoría más amplia de “lo social”, incluey a la sociedad civil. De conformidad con lo anterior , la sociedad civil se refiere a las estructuras de la socialización, asociación y formas de comunicación organizadas del mundo de la vida, en la medida en que éstas han sido institucionalizadas o se encuentran en proceso de serlo. (COHEN & ARATO, 2000. pg 10)


Os movimentos sociais sobressaem limitações e são agentes centrais da sociedade contemporânea, trazendo pautas e articulando as conduções em esfera política, social e econômica da sociedade. Ao conceituar movimentos sociais vale ressaltar três visões, a de Cohen e Arato, a de Charles Tilly e a de Eder Sander. Para Cohen e Arato os movimentos sociais se baseiam como um elemento dinâmico possibilitando converter em realidade os potenciais positivos das sociedades civis modernas. Tratam o termo “novos movimentos sociais” distinguindo-os dos movimentos sociais que antecederam os anos 70 nos países ocidentais. Os novos movimentos sociais englobam os movimentos pacifistas, feministas, ambientais e em busca de democracia e autonomia. São a relação entre ação coletiva contemporânea e a sociedade civil. Já na concepção de Charles Tilly, a dimensão do repertório do movimento social se sobrepõe aos repertórios de outros fenômenos políticos, como por exemplo, o sindicalismo e as eleições. Ao decorrer do século XX, associações com finalidades específicas começaram a realizar uma enorme variedade de funções políticas em âmbito global. A integração entre a maior parte dessas atuações sustentadas por campanhas, distingue os movimentos sociais de outras variações da política. Para Tilly:


Consequentemente, participantes, observadores e analistas que aprovam um episódio de ação coletiva popular muitas vezes o chamam, hoje em dia, de movimento social, envolva ele ou não a combinação de campanha,repertório e demonstrações de VUNC.(TILLY, 2010. pg 140)


Concluindo com a tese de Eder Sander sobre os “novos personagens que entram em cena”, os movimentos sociais tiveram o desafio de construir suas identidades enquanto sujeitos políticos, pois eram ignorados no cenário político como um todo. A diversidade social provoca a inclusão de diversas formas de manifestação social. Sader ressalta a importância de encarar os movimentos sociais como modalidades da "emergência das classes populares" e para ele, os movimentos são um montante de particularidades relacionadas à elaboração das diferenças vividas por seus militantes.
Sociedade civil brasileira e as Diretas Já:


A busca pela democracia se tornava a cada dia mais incontestável entre os brasileiros. Diante de um governo corrupto, truculento, que tinha uma dívida latente com o FMI e estava sendo cobrado por isso, que não satisfazia sua população, governo onde a inflação chegava aos 200% , que havia uma alarmante queda no crescimento e por fim, uma crise interna generalizada. Os brasileiros não confiavam mais no governo e em seus métodos, a combinação entre estagnação econômica e alto índice de inflação acarretou à chamada “Crise do Milagre Econômico”.
A transição entre regimes políticos que implica processos de democratização é entendida como sendo um intervalo entre um regime político e outro. A transição pode ocorrer de duas formas, ou pela dissolução do regime por sí próprio (o governo está tão desgastado que não se sustenta e assim, vai perdendo gradualmente sua capacidade organizativa e não tem outra alternativa se não for uma mudança política), ou ocorrendo pelo surgimento de lutas/movimentos sociais que se apresentam em oposição ao regime e exigem garantias dos direitos básicos e  abertura dos espaços de discussão para a participação popular.
Mas antes da redemocratização do Brasil, houve muita luta. As demandas das lutas e movimentos sociais são em pró da democracia, a qual implica modificações drásticas no sistema político, significativas mudanças na sociedade civil e também na correlação entre ambos.  Nesse conjunto de movimentos e manifestações, estavam presentes os movimentos estudantis, a campanha da Anistia, as greves do ABC, o movimento pró-PT e pela fundação da CUT. Em paralelo e entrelaçado à essas manifestações surgia naturalmente, como forma de repúdio da população ao regime de exceção, o anseio popular pelo direito ao voto, pelo direito do povo escolher seu representante de maneira direta. Esse anseio foi manifestado de diferentes formas, como por meio de declarações da oposição política em entrevistas, artigos, imprensa, propostas de parlamentares e monções em assembleias.
Tais acontecimentos cresceram até tomar corpo e eclodir a primeira manifestação por diretas, um grande comício organizado na praça Charles Miller no dia 27 de Novembro de 1983. Ato pioneiro de extrema importância para analisarmos os decorrentes acontecimentos que levaram a queda do regime militar. O movimento Diretas Já começou tímido, pequeno e desacreditado por muitos, mas se transformou no maior movimento social da história do Brasil, levando mais de 5 milhões de brasileiros às ruas. 5 milhões que tinham força e representatividade de todos os 130 milhões de brasileiros.  
O movimento reuniu as mais distintas esferas sociais culturais e econômicas, foi representado pela sociedade política através de inúmeros parlamentares (de vários partidos, inclusive do próprio PDS). Já na sociedade econômica, a parte dos empresários e imprensa também manifestaram seu apoio ao movimento. E por fim, a mais importante e também maior parte dos agentes, a sociedade civil. Eram artistas, advogados, sindicatos, estudantes, jovens, adultos, idosos, enfim, cidadãos de todos os setores da sociedade.
Cohen e Arato definem a sociedade civil:


[...] como una esfera de interacción social entre la economía y el Estado, compuesta ante todo de la esfera íntima (en especial la familia), la esfera de las asociaciones (en especial las asociaciones voluntarias), los movimientos sociales y las formas de comunicación pública. La sociedad civil moderna se crea por formas de utoconstitución y automovilización. Se institucionaliza y generaliza mediante las leyes, y especialmente los derechos objetivos, [en tanto que son producto de su intervención en su formación y transformación] que estabilizan la diferenciación social. (COHEN & ARATO, 2000. pg 8)


A especificidade da sociedade civil se da por sua autonomia perante o Estado, da economia e de qualquer partido político ou organizações governamentais, logo, somente medem sua relação com o Estado no âmbito social.Seu papel político não é a conquista do poder político administrativo, nem do mercado geral. É a influência que podem exercer sobre eles através de sua capacidade de organização democrática e discussão pública. A sociedade civil é dotada de poder para transformar as instituições e as conduzir até alcançar um estado de equilíbrio na sociedade, dessa forma, torna-se institucional.
A Participação da sociedade civil na construção ou modificação das leis é o que outorga sua legitimidade. Ao estabelecer uma relação direta entre sociedade civil e movimentos sociais é possível, para Cohen e Arato, Definir sociedade civil no contexto ou espaço em que se geram e reproduzem os sujeitos coletivos, os quais permitem a ocupação deste espaço. As Diretas Já não obtiveram resposta em 1984, a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada pelo Congresso, ação não determinante, já que não foi o suficiente para calar o povo que aclamava mudanças e fazer esquecida a Emenda.
A democracia faz parte do contexto cultural de uma sociedade, como também de sua estrutura e processo. De acordo com uma pesquisa da Latinobarômetro, a democracia é vista pela América Latina como o “melhor das piores formas de se governar”. E mais, para 50% dos entrevistados, um regime autoritário e ditatorial que resolve os problemas da sociedade é uma forma de governo aceitável. No Brasil foi constatado o nível mais baixo de convicção que a democracia é o melhor sistema de governo, com cerca de 37% dos votos. Com esse resultado podemos concluir que a democracia no Brasil tem um caráter minimalista.
O movimento foi capaz de reunir as mais diferentes pessoas em pró de um único objetivo, as eleições diretas. Esse objetivo não representava um compromisso com vertentes políticas, seja elas de esquerda ou de direita e por isso não teve viés excludente, conseguindo unir as forças de todos os brasileiros possuindo caráter nacional em luta pela democracia. As Diretas Já impulsionou os que estavam amedrontados com a repressão vivida na época da ditadura, isso se deve por ter assumido o formato de campanha popular, não exigindo assim, o comprometimento pessoal. Por ser um movimento de massa é impossível individualizar as responsabilidades.
As eleições diretas vieram apenas em 1989. Com a união entre a frente democrática e o movimento de massas foi selado o fim da ditadura, por mais que tardia. Mesmo com a espera de 5 anos, pode-se afirmar que as Diretas Já cumpriu seu papel. Não era uma proposta em que foi medida o uso da força para chegar ao objetivo, mas sim para que de forma pacífica fosse conduzido as mudanças no cenário político do país e não houvesse pretexto para mais repressão.
Cohen e Arato destinam todas suas esperanças na sociedade civil, que vem como um novo paradigma e ocupará o espaço vazio, sendo a partir de sua mobilização, possível a realização dos direitos básicos, as instalações de instituições democráticas, a solidariedade entre os cidadãos e a justiça social perante todos.
[...] la propia sociedad civil ha surgido como una nueva clase de utopía, una a la que llamamos “autolimitada”, una utopía que incluye un rango de formas complementarias de democracia y un complejo conjunto de derechos civiles, sociales y políticos que deben ser compatibles con la diferenciación moderna de la sociedad (COHEN & ARATO. 2000 pg 11).

A instauração da democracia exige a modificação das instituições políticas, que devem ser capacitadas a responder eficientemente as demandas de diversos grupos.  De acordo com os autores, só se consegue esse cenário se for possível instaurar novamente o protagonismo da sociedade civil.

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